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CERIMÔNIA (F.Arrabal) DO AZUL FRENÉTICO Wilson Coêlho ("Brasil, circonstancialmente"...)






CERIMÔNIA DO AZUL FRENÉTICO
Wilson Coêlho (Brasil, circonstancialmente...)

Num estilo lingüístico neo-surrealista, O Grande Cerimonial, de Fernando Arrabal, em sua primeira versão, foi escrito em 1963. Mas, em meados dos anos sessenta, ao revisar as segundas edições de suas primeiras obras, Arrabal resolveu por inserir no interior dos diálogos considerados ingênuos, entendidos como uma marca de sua dramaturgia, algumas frases numa linguagem neo-surrealista. Na peça, O Grande Cerimonial, por exemplo, a partir da frase no meio de um diálogo onde um personagem afirma que “O azul frenético sacudirá nosso silêncio e nos colocará estrelas e pedrinhas por nossos olhos fechados”, compreendemos tratar-se de um artifício que produz – entre o encanto primeiro ao lidar com a palavra e sua “indubitável” musicalidade – um caminho difícil para conciliar essa espécie de incômodo da linguagem infantil com o assemantismo da poesia neo-surrealista.
Trocando em miúdos, O Grande Cerimonial é um drama em dois atos e um prólogo, cujos personagens são CAVANOSA (uma referência ao mito de Casanova às avessas), SIL (Lis ao contrário), o AMANTE, a MÃE e LYS (outra forma de escrever Lis, como se pronuncia LUCE em francês, o nome da mulher de Fernando Arrabal). Aqui, o que chamamos de cerimonial se opõe à cerimônia como um mero conjunto de formalidades que se impõe como um comportamento regular de culto, pois – apesar de sua lógica interna – diz respeito justamente à possibilidade de suscitar uma ruptura com esses padrões. Cavanosa está em busca de uma mulher “pura” e – ao mesmo tempo – profana. Longe da idéia reduzida de uma relação doentia de um filho com sua mãe nos moldes do paroxismo redundante e edipiano da psicanálise, considerando que – do amor existente entre criador e criatura – sua abordagem é arquetípica, tanto no sentido mítico quanto histórico, ou seja, a mãe pode representar a Madona, a divindade, ou mesmo a Espanha que na vida do autor ocupa o papel de madrasta. Madrasta história, como ele a define de forma mais precisa em Carta de amor. Mas esta história de amor, apesar das “monstruosidades”, como muitos propõem, não se trata de uma história de amor ao contrário, entendendo o amor em nosso modelo de sociedade como um tipo de ato imundo (i-mundo, negação do mundo), ou seja, uma forma de estar fora do mundo. O mundo negado como totalidade e reduzido ao universo do objeto amado. Como preferem alguns, uma solidão a dois ou um egoísmo ampliado.
A montagem de O Grande Cerimonial, de Fernando Arrabal, pelo Teatro Kaus Cia. Experimental, de São Paulo, com direção de Reginaldo Nascimento, abre um diálogo interessante entre a dramaturgia e a encenação. No que diz respeito à pesquisa estética, transitando do surrealismo ao pânico e passando pelo expressionismo e pelo absurdo, bem como a aplicação dos resultados da mesma, cabe ressaltar o esmero com o qual foi tratado o texto, garantindo a fidelidade para com a dramaturgia, sem que isso fosse um engessamento do processo criativo, considerando a agilidade da interpretação. No mundo de Cavanosa, em O Grande Cerimonial, as mulheres não passam de objetos-delírios para o seu prazer, como na cena de Fellini quando Casanova (baseado nas memórias do veneziano Giacomo Casanova que viveu de 1725 a 1798), depois de muitas conquistas, se apaixona por um manequim de loja (construído de fibra) ou mesmo quando diante de uma jovem seduzida ele constata o fato de ela ter chegado muito tarde em sua vida e, ele, muito cedo na dela. Mas o mais interessante na montagem de O Grande Cerimonial é que, apesar das bonecas que constam no texto de Arrabal, os personagens humanos também se metamorfoseiam em bonecos. Uma idéia de que o livre-arbítrio humano se pauta numa determinada ordem em que a liberdade é a possibilidade de optar, mas o gesto de optar também passa por uma limitação e controle. Optamos entre o que se nos é oferecido num universo de compreensão de um caos que tem suas próprias regras. Por outro lado, na encenação, vale a pena destacar que existe ai um equilíbrio que se sustenta entre o excesso e a escassez. Os bonecos-atores, não se perdem na rigidez estereotipada de bonecos e, tampouco, são vítimas da interpretação demasiado dramatizada. O personagem Cavanosa, coxo e corcunda, interpretado por Alessandro Hernandez, pode servir de exemplo, considerando que mesmo sendo coxo e corcunda, perfil que – de uma forma bem sutil – delineia sua condição humana entre a fatalidade que materialmente o caracteriza e a possibilidade da revolta e criação de novos sentidos. A personagem Sil (Lys ao contrário), interpretada por Amália Pereira, também oscila entre o humano-boneco e o boneco-humano, como uma bailarina da caixinha de música que está no limite entre cumprir a movimentação de sua personagem previsível de sua condição e a possibilidade de se rebelar como tal. A mãe, interpretada por Deborah Scavone, mais que um boneco, se sustenta do arquétipo da Madona que tem um papel a cumprir, embora extrapole essa condição na medida em que – em desacordo com a tradição edipiana – Laio fica em segundo plano e, se é possível dizer do incesto, aqui é a Jocasta quem se insinua. Mas pode-se interpretar que a mãe, no sentido da geradora, se coloca no lugar de uma nova esfinge que – para não devorar o filho que considera frágil – faz com que este a decifre para que o mesmo, ao saciar-se de sua carne, possa sobreviver ao sentir-se forte. O Amante, interpretado por Alessandro Hanel, surge como uma espécie de personagem não-personagem, mas esse não-personagem acaba por se tornar o pivô para o desenrolar da trama, considerando que – apesar de não ser um dos protagonistas – se insere como a causa principal do conflito do espetáculo, tornando-se um obstáculo que propicia um exercício da contradição dentro da lógica que se estabelece como um princípio de identidade na relação opressor-oprimido da obra. Lis (Sil ao contrário), por sua vez, e trazendo novamente à cena Amália Pereira, revela o aspecto circular da obra arrabaliana, onde o princípio e o fim são dois lados da mesma questão, onde a continuidade se dá como o meio dessa realização.
Assim, o que se convencionou, a partir de Martin Esslin, definir o absurdo, em Arrabal, mais que uma necessidade de negação do ser, trata-se de colocar em questão as razões do ser e, como na visão existencialista de Sartre em O ser e o nada, é uma espécie de “divina comédia”, no sentido de uma visão irônica e iconoclasta da existência, colocando em xeque a lógica que, de uma certa perspectiva, somente se distingue do caos por um acordo silencioso que estabelecemos para suportar a vida.
Enfim, para além da idéia de cerimônia que é a proposta desde a estrutura do texto e do tema que encerra O Grande Cerimonial, o Teatro Kaus Cia. Experimental realiza a verdadeira cerimônia que se dá no prazer do encontro entre palco e platéia, no momento em que o azul frenético sacudiu nosso silêncio, nos colocando estrelas e pedrinhas em nossos olhos...

TEATRO KAUS
COOPERATIVA PAULISTA DE TEATRO
O GRANDE CERIMONIAL
Autor: Fernando Arrabal
Tradução: Wilson Coêlho
Direção: Reginaldo Nascimento
Atores:
Alessandro Hernandez.............................Cavanosa
Amália Pereira............................................Sil e Lis
Deborah Scavone.........................................A Mãe
Alessandro Hanel...................................O Amante